A luta de defensores de direitos humanos e a impunidade no Brasil

Foto: Joka Madruga

Foto: Joka Madruga

 

A 5ª edição do caderno Direitos Humanos, Justiça e Participação Social discute o cenário da justiça brasileira. A publicação da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH) traz o artigo dos advogados populares Fernando Prioste e Hugo de Morais, que retrata a questão da impunidade de crimes cometidos contra defensores dos direitos humanos. Nesse sentido, a atuação das organizações de direitos humanos e movimentos sociais populares se mostra fundamental no combate as origens dessas violências. Leia o artigo completo abaixo. 

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A luta de defensores de direitos humanos e a impunidade no Brasil
*Fernando G. V. Prioste – Advogado popular e coordenador da Terra de Direitos, JusDh
**Hugo Belarmino de Morais – Advogado popular na Dignitatis e professor da UFPB, JusDh

Defensores(as) de direitos humanos têm papel essencial na construção de uma sociedade livre, justa e solidária que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem e raça, com vistas à erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais. É inaceitável que no enfrentamento às situações de violações de direitos humanos os defensores(as) sejam expostos a situações de violência que têm redundado em tantos assassinatos. Na árdua luta pela responsabilização criminal dos assassinos de defensores de direitos humanos, questiona-se o papel da condenação penal  para o autor do delito e suas consequências políticas para a sociedade.

Quem trabalha pela condenação criminal de pessoas que cometeram homicídio contra defensores(as) sabe que o direito penal é seletivo, que a pena de prisão não tem eficaz papel ressocializador e que o sistema de justiça tem grande déficit democrático. Em geral, não cumpre com o papel que lhe é dado na busca pela superação das desigualdades sociais. Contudo, essas questões não elidem a necessidade de buscar justiça na esfera penal.

As condenações representam a esperança contra a impunidade, bem como a resignação das lutas cotidianas dos sujeitos, coletivos ou individuais, que estão na linha de frente contra as violações de direitos humanos. Nesse sentido, é possível afirmar que as responsabilizações penais transcendem a tática e se inserem no âmago da estratégia política. Não necessariamente pela restrição da liberdade, mas porque fortalecem os sujeitos da história no cotidiano da luta, desvelam o papel das instituições e das elites políticas e econômicas da sociedade, e põem em evidência as contradições deste apenas declarado estado democrático de direito. Entretanto, são raras as situações de êxito na responsabilização criminal em caso de assassinatos de defensores(as), sendo ainda mais rara a responsabilização de mandantes e/ou pessoas com poder político e econômico.

Entre os motivos da baixa responsabilização está a relação promíscua das elites políticas e econômicas com o sistema de justiça.Do ponto de vista estrutural, essa relação impõe sérios limites na apuração, denúncia e posterior condenação daqueles que cometem tais crimes. Essa situação acaba por inviabilizar investigações policiais e constrange agentes do sistema de justiça que têm o dever de processar e julgar pessoas com poder político e econômico. Em alguns casos, essas relações promíscuas acabam por livrar os mandantes da responsabilização penal, deixando para o executor do crime, geralmente pessoa pobre e negra, a condenação que teria a função de fazer justiça.

Também não são raras as situações em que a busca pela condenação de assassinos de defensores(as)  enfrentam os mesmos obstáculos da luta política que os defensores travavam.Preconceitos contra índios, contra trabalhadores rurais sem terra, contra militantes dos movimentos de moradores em situação de rua e contra aqueles que lutam pelos direitos dos encarcerados dificultam a responsabilização e parecem indicar uma relativização da repressão penal contra aqueles que atentam contra a vida dos defensores(as).

O contexto adverso enfrentado por quem luta por esse tipo responsabilização criminal faz com que esses atores tenham que adotar diversas ações incomuns para casos de homicídio. A utilização de instâncias internacionais, o desaforamento e, mais recentemente, a federalização, estão entre os recursos utilizados, como veremos a seguir.

Milícias privadas e assassinatos de trabalhadores rurais sem terra no Paraná

Entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, dezesseis integrantes do MST foram assassinados no Paraná.Uma milícia privada articulada por ruralistas, com a conivência e a participação de autoridades públicas, foi responsável por dezenas de despejos ilegais e esteve relacionada com os assassinatos. Dos dezesseis casos, quatro tiveram o inquérito policial arquivado sem que os responsáveis fossem identificados, em três casos os acusados foram absolvidos e os crimes restaram impunes,sete casos ainda tramitam no sistema de justiça e em apenas dois casos houve alguma responsabilização penal, ainda que não definitiva.

Ainda que o resultado da responsabilização pelos homicídios esteja muito aquém do desejado, a atuação de organizações da sociedade civil foi decisiva para que alguns dos principais atores das violências contra trabalhadores rurais fossem responsabilizados pelos seus atos. No caso do assassinato do trabalhador rural Celso Anghinoni, um pistoleiro foi condenado pelo crime e cumpre pena, sem que o mandante tenha sido identificado. No caso Sebastião Camargo Filho, trabalhador rural assassinado durante despejo ilegal, um pistoleiro foi condenado, assim como o proprietário da fazenda, Teissin Tina, e o ex-presidente da União Democrática Ruralista do Paraná (UDR) Marcos Prochet, acusado de disparar a arma que vitimou Sebastião.1

Destaca-se também que o ex-tenente coronel da Polícia Militar do Estado do Paraná, Valdir Coppeti Neves, foi condenado em segunda instância por crimes investigados na operação Março Branco da Polícia Federal, que desmantelou o esquema de milícias armadas no Estado em 2005. A milícia comandada por Neves fazia despejos ilegais e violentos em ocupações do MST.

As atividades que resultaram nas responsabilizações envolveram o acompanhamento processual de todas as ações penais na qualidade de assistentes de acusação, o envio de seis casos à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, envio de casos ao Conselho Nacional de Justiça para acompanhamento pelo Programa Justiça Plena, realização de desaforamentos para buscar imparcialidade do corpo de jurados, denúncias nacionais e internacionais sobre extravios de autos e ampla divulgação dos casos, entre outras ações.

Nos casos em que impera a impunidade encontram-se situações absurdas, como no caso Elias de Meura, em que o Ministério Público arquivou o inquérito policial, pois o proprietário da fazenda teria agido em “legítima defesa do direito de propriedade”, assim como no caso Sétimo Garibaldi, em que o inquérito foi arquivado por ausência de indícios de autoria mesmo com cinco testemunhas confirmando a presença ativa do proprietário da fazenda na hora e local do crime.

Milícias privadas e pistolagem no assassinato do advogado Manoel Matos

No caso de Manoel Mattos, morto por sua atuação na denúncia de grupos de extermínio e crimes de pistolagem na fronteira da Paraíba e Pernambuco, a chamada “fronteira do medo”, as dificuldades e desafios ainda continuam. O processo – considerado o primeiro caso de federalização de graves crimes contra os direitos humanos, pela aplicação do chamado IDC – Incidente de Deslocamento de Competência previsto no art. 109, § 5º da CF – foi adiado recentemente. Isso porque um pedido liminar formulado pelos assistentes de acusação e pelo Ministério Público Federal foi deferido no TRF da 5ª Região, com fundamento legal no art. 427 do Código de Processo Penal.

O dispositivo acima permite o desaforamento da sessão do Tribunal do Júri para outra comarca em casos de interesse da ordem pública ou quando houver dúvida sobre a imparcialidade do Júri. No caso concreto, o julgamento na Justiça Federal do Estado da Paraíba revelou-se bastante problemático, por conta da situação de insegurança dos jurados, dos familiares da vítima e de testemunhas na primeira tentativa de sessão (ocorrida no dia 18 de novembro do ano passado).

Como no caso anterior do Paraná, a federalização pode ser apontada como resultado de um longo processo de acompanhamento que também envolveu a utilização das instâncias internacionais – em especial a OEA – além do acompanhamento processual da ação penal na qualidade de assistentes de acusação, participação comoamicus curiaeno processo do IDC no STJ, realização de seminários temáticos e monitoramento das atividade nos órgãos do Executivo, em especial a Comissão Especial Manoel Mattos do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).

As organizações de direitos humanos e os familiares, após as imensas dificuldades no âmbito da instrução processual e o deslocamento para a Justiça Federal da Paraíba aguardam um desfecho justo e adequado, com a condenação dos acusados.

Além disso, tais processos também indicam a necessidade de caminhar com uma nova visão sobre esses procedimentos, para evitar que as inovações derivadas de novos contextos acabem perdendo seu potencial interventivo por falta de regulamentação, como é o caso do IDC e todo o procedimento da federalização. Mais uma agenda importante para monitoramento e proposição, tendo por base a participação popular e a democratização dos procedimentos judiciais.

Outra questão importante que esses casos trazem diz respeito aos desafios do Brasil em lidar com a garantia e efetivação das decisões das instâncias internacionais no âmbito interno. Novas regulamentações no campo institucional , aliadas a novas perspectivas de incidência político-jurídica, estão no centro do debate sobre os direitos humanos e necessitam de respostas condizentes com esses desafios.

Na busca por justiça, o papel das organizações de direitos humanos e dos movimentos sociais populares é fundamental, pois não  é preciso só condenar acusados de violar os direitos humanos e estabelecer políticas públicas firmes de proteção a defensores(as) de direitos humanos. O essencial é atacar estruturalmente as causas dessas violações.

Terra de Direitos – Organização de direitos humanos
Dignitatis – Assessoria Técnica Popular

 

>> Acompanhe o caso Manoel Mattos na página do Facebook

>> Acompanhe os casos de assassinatos de trabalhadores rurais no Paraná: www.terradedireitos.org.br

 

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