No meio do caminho tinha Pedrinhas, tinha Pedrinhas no meio do caminho

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Na 5ª edição do caderno Direitos Humanos Justiça e Participação Social, o artigo das integrantes do Centro de Assessoria Popular Mariana Criola retrata a situação do sistema prisional brasileiro. As autoras questionam o atual modelo punitivo, e apresentam dados que revelam o descaso do poder público com os indivíduos que cumprem pena dentro dos presídios.

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No meio do caminho tinha Pedrinhas, tinha Pedrinhas no meio do caminho

 *Aline Caldeira, Ana Claudia Tavares, Fernanda Maria Vieira,Mariana Trotta Quintans.

No início de 2014, a imprensa divulgou imagens dilacerantes que desvelam o nosso sistema prisional: presos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, estavam decapitando outros presos no pátio central do presídio. As imagens fortes dos corpos e do sangue no pátio nos dão a dimensão do grau de degradação e barbárie do nosso sistema carcerário e revelam muito sobre o papel que as instituições ligadas ao sistema judicial desempenham na manutenção dessa barbárie, que infelizmente não se concentra apenas no Maranhão.

Em dezembro de 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou seu relatório sobre a situação do sistema carcerário no Maranhão, cujo teor foi entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa. No mencionado relatório há uma diagnose do caos instalado no sistema penitenciário do Maranhão, marca de um período longo de descaso por parte do Executivo estadual, violência por parte dos agentes de segurança, deterioração das unidades prisionais com superlotação,péssimas condições de higiene, desqualificação funcional para o serviço.

Como compreender que diante do relatório (lembrando que não foi apenas um relatório realizado pela equipe do CNJ) nada tenha sido feito, permitindo, assim, que até a ampla veiculação das imagens da decapitação, 62 presos tenham sido assassinados dentro da unidade, bem como estupros às mulheres de presos? Como compreender tanto descaso por parte dos poderes públicos, sejam eles do Executivo, Legislativo e Judiciário, pela situação dos internos no sistema carcerário de nosso país?

De fato, o sistema carcerário brasileiro já há algum tempo vem apontando para seu fracasso como modelo punitivo, cenário que se ampliou nas últimas décadas diante do crescimento da população carcerária derivado de uma ampliação global do estatuto penal(1). A hegemonia do modelo neoliberal expressa essa nova ordem global que necessita tanto de estrutura prisional ampliada, decorrendo daí o aprisionamento em massa, como novos marcos legislativos no campo penal e, no limite, a eliminação do inimigo, entendido como um não ser.

Esse binômio gesta um paulatino processo de flexibilização das garantias trazidas em nosso texto constitucional, afinal, a busca por um território seguro, sem violência, impõe um combate sem trégua aos bárbaros, às hordas que ameaçam a segurança social. E esse é um elemento contemporâneo no que se refere à questão da segurança pública, pois há uma simbiose entre o que se compreende ser segurança pública com segurança nacional, e mesmo segurança global(2), ampliando o exercício militar no enfrentamento à violência urbana(3).

No entanto, apesar do fracasso reconhecido do sistema penitenciário, ele se apresenta como a política penal privilegiada(4) quando o debate é segurança. Esse privilegiar gesta o quadro, agora publicizado, da penitenciária de Pedrinhas, expressão de uma deterioração da estrutura carcerária e degradação dos indivíduos mantidos provisoriamente ou já sentenciados, representando verdadeiro ataque à Constituição da República e aos mais comezinhos direitos da pessoa humana.

Em recente pesquisa realizada pelo Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, publicada pelo projeto Pensando o Direito, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) em 2012, cujo objeto centrava-se na aplicabilidade da Lei de Execução Penal e nas garantias de direitos dentro do sistema penitenciário em dois Estados, a saber: Rio de Janeiro e Paraíba, buscou-se traçar o perfil socioeconômico do condenado e sua percepção da unidade em que se encontrava, bem como as condições com relação à integridade física, saúde, trabalho, dentre outras, como na análise de processos em tramitação nas Varas de Execução Penal (VEPs).

Alguns dos dados obtidos são de conhecimento público: os condenados são pardos e negros, na faixa etária de 19 aos 30 anos, logo jovens, de baixa escolaridade. Mas outros dados obtidos revelam a hipocrisia que marca o sistema punitivo: a seletividade do sistema penal fica mais evidente quando se verifica a trajetória familiar, cerca de 60% dos condenados nos dois regimes já tiveram algum familiar preso, o que significa uma reprodução social penal imposta a esse segmento social já economicamente vulnerável; quase 70% dos condenados em regime fechado e semiaberto não estudam, apesar de ser um direito garantido na LEP; cerca de 80% no regime semiaberto e 90% no regime fechado não têm acesso ao trabalho, portanto, as penas são cumpridas quase na integralidade exclusivamente dentro da unidade; no cruzamento dos dados entre trabalho e educação, chegou-se ao índice alarmante de que quase 60% dos condenados em regime semiaberto e 70% no regime fechado nem trabalham e nem estudam, o que significa ser, no mínimo, cinismo o discurso de um sistema ressocializador; cerca de 90% nos dois regimes que se apresentaram como dependentes químicos antes da prisão não tiveram nenhum tratamento para desintoxicação, o que per si já demonstra a barbarização da lógica subjacente ao sistema punitivo que não percebe no indivíduo condenado um sujeito de direitos.

Um dos dados alarmantes verificados na pesquisa (também verificado pelo CNJ), é o da ausência de controle judicial nas aplicações das sanções disciplinares, que representa não somente em perda de direitos ao condenado, mas uma relação de poder arbitrária dentro da unidade penitenciária.

A LEP estabelece um controle judicial quando a natureza da falta disciplinar for grave. No entanto, a pesquisa verificou que os procedimentos ocorrem sem o abrigo do Judiciário, cuja manifestação só ocorre posteriormente ao processo disciplinar realizado na própria unidade penitenciária, em muitos casos, sem o direito ao contraditório do apenado.Ressalta-se que mesmo a intervenção posterior do Judiciário não representa um controle efetivo, pois se trata de mero despacho de ciente, sem que haja a verificação das garantias constitucionais processuais ao condenado.

Esses dados revelam o descaso manifestado pelos poderes públicos com relação ao destino dos indivíduos que se encontram intramuros. Vistos como bárbaros, logo, não humanos, não há que se ter comiseração, derivando daí a permissibilidade das autoridades para que presos decapitassem outros presos (que ninguém duvide da ciência das autoridades desses crimes!). Mas o tratamento destinado aos presos revela mais sobre o patamar civilizatório de uma sociedade do que propriamente sobre a índole desses indivíduos.

E nesse quesito, nossa sociedade, pelo tratamento que destina aos presos, está demarcada por uma incivilidade. Nunca foi tão necessário resgatar as análises do filósofo Montaigne, que já no século XVI se contrapunha à perspectiva colonial afirmando: “Mas nunca se encontrou nenhuma opinião tão desregrada que desculpasse a traição, a deslealdade, a tirania, a crueldade,que são nossos erros habituais. Portanto, podemos muito bem chamá-los de bárbaros com relação às regras da razão, mas não com relação a nós, que ultrapassamos em toda espécie de barbárie.”

*Doutoranda PUC/RJ; professora da UFRJ; professora da UFJF; professora da UFRJ e PUC/RJ. As autoras são também integrantes do Centro de Assessoria Popular Mariana Criola. 

(1) Não é pouco significativo que a resposta que o Executivo e o Legislativo, seja nos Estados, como no plano federal, apresentam diante das mobilizações de rua desde junho de 2013 vem sendo a apresentação de novos marcos normativos no campo penal (lei de terrorismo, redução da idade penal, lei da desordem pública, lei antimáscara). Muitos desses marcos normativos, especialmente os estaduais, foram aprovados de forma açodada, sem debates públicos, demonstrando o caráter de exceção dessas leis.
(2) O constitucionalista português Canotilho aponta que desde o 11 de Setembro americano alguns tipos penais acabam por justificar não somente a quebra das garantias constitucionais como a busca por uma unidade normativa internacional. Dentre esses tipos está o terrorismo, que vem sendo objeto de debate no Legislativo brasileiro.
(3) As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) expressam essa nova configuração de controle social sobre o território proletarizado.
(4) Para se ter uma ideia da sedução carcerária, apesar da lei 12.403 de 2011 estabelecer a prisão cautelar como última ratio, possibilitando uma série de medidas de segurança, fora a prisão, para garantia da instrução criminal, os dados levantados pelo Infopen apontam um crescimento abissal da população masculina encarcerada provisoriamente: de junho de 2011, o número levantado sobe de 158.389 para 184.284 em dezembro de 2012, e os dados do Infopen não são referentes a todos os Estados, pois a base de dados depende da vontade de cada Executivo em fornecer seu balanço. Esse aumento demonstra uma determinação por parte do sistema judicial de não aplicar as medidas de segurança, previstas em lei, optando visivelmente pela prisão como única ratio cabível à instrução criminal.

 


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