O STF e o direito a ser criança

Em artigo publicado no dia 30, no Correio Brasiliense, Alessandra Gotti e Salomão Ximenes refletem sobre duas ações de grande repercussão sobre a concepção de infância no Brasil,  em pauta nesta semana no STF.

*Por Alessandra Gotti e Salomão Ximenes.

Foto: All Kids

Estão na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) desta semana duas ações de grande repercussão sobre a concepção de infância no Brasil: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 17 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 292.

Essas ações, que serão julgadas em conjunto, discutem a constitucionalidade do chamado “corte etário” para o ingresso das crianças no ensino fundamental regular, que se inicia, segundo a Constituição Federal, aos 6 anos de idade. Em resumo, discute-se se o Ministério da Educação (MEC), por intermédio do Conselho Nacional de Educação (CNE), poderia exigir, nas Resoluções nº 1/2010 e nº 6/2010 do CNE/CEB, que a criança tenha 6 completos até o dia 31 de março do ano de sua matrícula.

Que a controvérsia não nos engane em sua aparentemente trivialidade. Há ao menos dois aspectos de grande relevância em discussão.

Em primeiro lugar, a definição dos limites do controle judicial sobre temáticas de natureza técnica e administrativa decididas em colegiados especializados de políticas públicas. O CNE, órgão técnico especializado máximo de nosso sistema educacional, cuja atribuição é assessorar o MEC na decisão sobre questões normativas de cunho político-pedagógico, decidiu por unanimidade editar as referidas Resoluções, justamente estipulando o corte etário. Fez isso expressando um amplíssimo consenso do campo pedagógico e acadêmico, sobre a necessidade de assegurar os direitos da criança em seus respectivos estágios de desenvolvimento.

Tal como uma bola de neve, contudo, teses contrárias passaram a ser reconhecidas pelo Judiciário em uma verdadeira avalanche de ações do Oiapoque ao Chuí. As Resoluções chegaram a ficar suspensas em 12 Estados brasileiros, o que produziu uma verdadeira bagunça de critérios entre municípios, estados e rede privada.

Caberá ao STF responder até que ponto é dado ao Judiciário interferir em decisões político-pedagógicas tomadas por órgãos especializados competentes, o que, aliás, foi ressaltado pelo Ministro Roberto Barroso em seu voto. Esse ponto é sintomático da ausência de um canal de diálogo entre o Sistema de Justiça e o campo educacional, como já ocorre no caso da saúde, que conta, desde 2010, com o Fórum Nacional da Saúde no âmbito do Conselho Nacional de Justiça.

A segunda questão, e talvez a mais importante, diz respeito à própria definição de infância no Brasil, uma fase que vem sofrendo crescente compressão nas últimas décadas, quando deveria ser estendida e protegida ao máximo em nome do bem-estar das crianças. Tomemos em conta que a própria Constituição Federal já foi alterada em 2006 para antecipar o ingresso no ensino fundamental, que até então acontecia aos 7 anos de idade. Caso prevaleça a tese da inconstitucionalidade do corte etário, estaria autorizada a matrícula e a frequência nessa etapa escolar às crianças de apenas 5 anos de idade, bastando para isso que completem 6 anos até o dia 31 de dezembro do ano respectivo!

No ensino fundamental, por sua própria natureza e objetivos, as crianças de apenas 5 anos serão submetidas ao regime tipicamente escolar: carteiras enfileiradas, aulas, avaliações periódicas, reprovações e pouca atenção dos adultos, em salas em geral superlotadas. Consolidar esse modelo seria um retrocesso inominável. Desde a Emenda Constitucional nº. 59/09, a matrícula na pré-escola para as crianças a partir dos 4 anos de idade é tão obrigatória quanto no ensino fundamental. A pré-escola e, antes dela, a creche, são as etapas apropriada à primeira infância, combinam o aprender ao brincar e ao cuidar, com espaços lúdicos necessários ao desenvolvimento nessa etapa. Sem o corte etário do MEC/CNE retira-se mais um ano da já encurtada infância das crianças brasileiras.

Como uma matrícula na escola de ensino fundamental tende a custar bem menos que a mesma matrícula na pré-escola as consequências de uma decisão desse tipo serão catastróficas. Sem limites político-pedagógicos, todos os incentivos estarão ofertados para que se se escolarize e se emparede nossas crianças de 5 anos, comprometendo-se o direito a ser criança. Caberá ao STF a última palavra sobre a extensão da infância no Brasil.

*Salomão Ximenes é doutor em Direito pela USP, professor da   UFABC, autor de “Direito à Qualidade na Educação Básica: teoria e crítica” (Quartier Latin).

*Alessandra Gotti é fundadora e Presidente Executiva do Instituto Articule. Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP e consultora da Unesco e CNE/CEB.

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