Audiência pública sobre a descriminalização do aborto: avanço na escuta à sociedade, mas com limites

A relatora ministra Rosa Weber escolheu, de forma unilateral, os 47 expositores. Coletivos apontam a ausência de mulheres que realizaram abortos ou foram criminalizadas pelo Estado.

*Por José Odeveza, com supervisão de Lizely Borges

Intervenção em frente ao STF durante o início da audiência pública da ADPF 442. Foto: Heloisa Adegas

As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF), assim como o Amicus Curiae (Amigo da Corte) é um dos poucos instrumentos de participação da sociedade nos processos que tramitam nos tribunais. O instrumento da audiência pública só foi regulamentado no STF em 2009 e ao todo já aconteceram 23 audiências. A audiência realizada nos dias 3 e 6 de agosto, e tem como debate a descriminalização do aborto até a 12º semana da gestação, revela os limites da escuta à sociedade pela mais alta Corte do país. A chamada pública para apresentação de expositores na audiência recebeu, ao todo, 187 pedidos e 47 foram aceitos, entre eles os de associações religiosas, órgãos internacionais e públicos do Brasil e coletivos e organizações da sociedade civil. Mas quais são os poderes e limites do instrumento da audiência? A participação popular dentro do Judiciário pode ser algo mais complexo do que se imagina.

Em sua essência a audiência busca ouvir diferentes agentes que abordam o tema, em vista de pluralizar o debate. Elas são instrumentos que o tribunal pode ou não utilizar para enfrentar dois problemas permanentes nos processos constitucionais: o de legitimação democrática, já que o Judiciário não deve invalidar a voz da sociedade em decisão que os afetam diretamente, e o de expertise técnica, ou seja, como o Judiciário pode tomar decisões que dizem respeito ao domínio da ciência.

Com isso o instrumento da audiência já se limita. A advogada popular do Coletivo Margarida Alves e cientista politica, Mariana Prandini Assis reconhece a importância da convocação da audiência e afirma que o exemplo da ministra Rosa Weber deveria ser seguido por outros sempre que relatarem processo com grande relevância social. No entanto, como limitações, ela explica que a forma que a audiência é  estruturada já exclui diversos atores sociais importantes da sociedade da participação.

“O processo de escolha de quem participará da audiência já é bastante restrito. Dentro de um processo judicial é feita uma chamada pública para que se indiquem nomes para participação na audiência. O chamado fica, na prática, limitado a grupos que estão articulados em torno do debate da questão e da própria ação judicial. No caso da audiência na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), houve um mobilização muito grande, por parte das organizações da sociedade civil,  para que fossem indicados muitos nomes a fim de garantir  pluralidade de vozes e diferentes formas de conhecimento”, destaca Mariana. O Coletivo Margarida Alvez, somado a outros cinco coletivos, farão uma exposição oral na audiência na Arguição que defende que os artigos 124 e 126 do Código Penal, elaborados em 1940, estão em conflito com a Constituição Brasileira.

A advogada popular explica que mesmo após toda a mobilização é possível perceber que o STF tem uma propensão para instituições e participações de atores especialistas no debate e que isso pode afetar o campo da realidade, já que, as mulheres que enfrentam as dificuldades e são diretamente afetadas pelas decisões ainda acabam sendo pouco ouvidas.

“Mesmo com a indicação de um número muito grande [de expositores na audiência], é possível perceber uma tendência que o STF tem de priorizar a fala de especialistas, no caso da descriminalização do aborto, de especialistas da área da saúde. Há também um espaço reservado para as instituições acadêmicas, que são os grupos e  professores das universidades. Também é possível perceber o peso das organizações internacionais, recebidas com grande abertura. Por fim, é possível identificar que ainda falta uma maior representação do bloco dos movimentos sociais. Nesta Ação especificamente nós representamos os movimentos das mulheres. São seis organizações para dividir o espaço de fala de 20 minutos, enquanto cada organização e instituição de outros campos tem o seu próprio espaço de fala, ainda que apresentem argumentos muito parecidos”, explica a advogada.

O exemplo citado por Mariana recentemente foi abordado na pesquisa sobre os limites das audiências públicas no STF, realizada pela doutoranda e mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da USP, Lívia Gil Guimarães. Em sua pesquisa exposta em artigo publicado no JOTA, ao analisar as 19 primeiras audiências públicas identificou que elas apresentam predominância de exposições individuais em detrimento da participação de grupos. Outro destaque é a pouca diversificação dos atores que frequentam o Tribunal, já que a grande maioria já são beneficiados pela entrada no STF a partir do rol de legitimados do Artigo 103 da Constituição Federal, que trata da proposição de ação de inconstitucionalidade.

No tribunal a decisão da saúde das mulheres
Em 2017 foram mais de 250 mil internações no Sistema Único de Saúde (SUS) e R$ 142 milhões gastos por causa de complicações pós-aborto. O dado apresentado pelo Ministério da Saúde ainda aponta que a maioria das mulheres que chegam aos hospitais públicos por complicações pós-aborto, são mulheres negras e de famílias de baixa renda.

A criminalização de pacientes pela prática do aborto durante atendimentos pós-complicações de procedimentos abortivos é uma das principais formas de entrada das brasileiras no sistema penal. A obstetriz Ellen Vieira, que atua no Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde, explica que a atuação dos profissionais da saúde em casos como estes são quase sempre coercitivos, criminalizantes e colocam a vida da mulher em segundo plano.

“É muito comum o aborto espontâneo, e é muito difícil identificar quando é espontâneo ou quando é provocado. Independentemente disso, a mulher que chega ao serviço de saúde é exposta a um nível de hostilização pelo profissional de saúde, que está diretamente ligado à uma cultura muito machista de que a mulher que não gesta é inválida. Infelizmente a gente vive essa realidade cultural e moral. Isso faz com as mulheres esperem muito tempo para o atendimento e quando é observado que precisa ser feito alguma intervenção de saúde, no serviço público, é muito comum ser utilizado técnicas defasadas, muito invasivas e pouco seguras. É comum ser relatado que os procedimentos são feitos sem anestesistas, se tornando um atendimento muito doloroso e torturante para essas mulheres”, destaca Ellen. De acordo com estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro em 65%  dos casos que mulheres que respondem por crime de aborto a denúncia foi realizada por profissionais da saúde, prática que viola o sigilo médico fundamental ao estabelecimento de confiança entre a paciente e o profissional.

Os impactos da jurisdição do aborto no Brasil
O processo que criminaliza mulheres em todo país pelo aborto voluntário afeta muitas camadas da sociedade. A discussão no STF é uma das primeiras medidas coletivas sobre a temática. A posição dos ministros em relação ao assunto afetará muitas instâncias do judiciário. Na ADPF 442, sob relatoria da ministra Rosa Weber, se aguarda o pronunciamento em julgamento. Em outro momento a Primeira Turma do STF abriu um precedente para descriminalizar aborto até terceiro mês. No caso específico de 2016, foi revogada a prisão preventiva de cinco médicos e funcionários de uma clínica de aborto. No julgamento três dos cinco ministros que compõem o colegiado consideraram que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não configura crime.

Após a audiência, e caso o julgamento os ministros do STF aprovem a ADPF, o desafio será a implementação de uma prática não criminalizatória em outras instâncias do judiciário e no sistema de saúde já que como é observado o embate também acontece nesses espaços.

Festival pela Vida das Mulheres
Paralelo à audiência no STF para debate da descriminalização do aborto acontece, em Brasília, o Festival Pela Vida das Mulheres. O evento que é um espaço aberto tanto para a formação, celebração e reivindicação quanto de transmissão completa da audiência em seus dois dias. O Festival acontecer do dia 3 de agosto e continua durante todo o fim de semana até o segundo dia da audiência no dia 6 de agosto, segunda-feira. O evento é gratuito e convida todas e todos para se unir em prol da vida das mulheres.

Mais informações na página do evento no Facebook que possui toda a programação: https://www.facebook.com/events/1679233825465542/

A audiência pública no STF também pode ser acompanhada na TV Justiça e no Canal do STF no YouTube. 

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