STF e a diversidade racial: o que perdemos sem um ministro negro?

Diversidade racial deve existir para ampliar horizonte interpretativo do pacto civilizatório na Constituição

Por:
SHEILA DE CARVALHO
ALLYNE ANDRADE E SILVA

Na semana passada, início do novembro negro, ocorreu a posse de Kassio Nunes Marques como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Kassio Nunes é o primeiro nome escolhido por Bolsonaro para o STF. Ex-juiz do Tribunal Regional Federal, sua nomeação foi validada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. O ministro ocupa a vaga deixada pelo ministro Celso de Mello, que aposentou-se por idade em 13 de outubro. Kassio é o 28º nome a ser indicado para o STF desde a redemocratização do país, em 1985, e o 26º sob a vigência da Constituição Federal de 1988.

A nomeação de Kassio, em um momento inicial, foi recebida como surpresa positiva, frente ao que se esperava na atual conjuntura, não atendendo nenhum dos critérios explicitamente avessos à Constituição Federal que antes predizia o atual presidente da República e seus apoiadores imediatos sobre eventual indicação ao Supremo.

Ainda assim, a nomeação foi envolvida em polêmicas acerca do currículo do candidato, que já viraram em tradição no governo Bolsonaro, em razão de um suposto indício de plágio em uma dissertação de mestrado, bem como pelo fato de curso de cinco dias ter sido considerado uma pós-graduação na Espanha.

Ademais, tivemos uma sabatina morna que não respondeu às questões que mais afligem a sociedade brasileira. Especificamente em relação ao racismo, Kassio Nunes não demonstrou nenhuma preocupação com a o tema da equidade racial, minimizando o tema do racismo, não respondendo questões sobre direito originário à terra pelos povos indígenas.

Para além dessas polêmicas em torno do nome e o currículo que o precede, o processo de escolha do novo ministro traz à tona, mais uma vez, questões de falta de transparência, controle e participação social, bem como a falta de diversidade e na composição do Supremo Tribunal Federal.

De acordo com Antônio Escrivão Filho, em pesquisa intitulada “Porteiro ou guardião? O Supremo Tribunal Federal em face aos direitos humanos”, o modelo tripartite de nomeação para o Supremo Tribunal Federal remonta à Constituição da República Velha, de 1891 e tem inspiração no modelo estado-unidense.

O processo de nomeação, atualmente descrito no artigo 101 da Constituição Federal vigente – é, bom lembrar – inicia-se pela (a) indicação da Presidência da República, passa pela (b) sabatina e deliberação pelo Senado e retorna para a (c) nomeação presidencial.

Como nos alerta o autor, desde 1981 o Brasil já se debateu com golpes de estado, alternou regimes autoritários e emergências democráticas, já houve fechamento e reabertura do Congresso, inúmeras alterações do sistema partidário. Quase tudo passou e mudou, menos o modelo de nomeação de ministros para a Suprema Corte.

Em um país de maioria negra, porém regido pelo racismo estrutural, onde homens brancos tem 8,2 vezes mais chances de se tornarem juízes, e 37 vezes mais chances de se tornarem desembargadores frente às mulheres negras[1], não nos surpreende que essa desigualdade étnica-social se reflita também na corte mais alta do país.

Atualmente, temos apenas um ministro negro, Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), dentre o grupo de 88 ministros distribuídos por cinco cortes superiores: Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM). Mesmo com o período de redemocratização e suposta democratização do país, nada se alterou na disparidade de representatividade da composição dos tribunais superiores em relação à sociedade brasileira.

Na História do Supremo, são identificados três ministros negros: (a) Pedro Lessa, apontado como o primeiro negro do STF (1907 a 1921); b) Hermenegildo de Barros, ministro de 1917 a 1931 e (c) Joaquim Barbosa (2003-2014), o terceiro a ser ministro e o primeiro a virar presidente. De igual forma, a representatividade de gênero não é realidade do Supremo Tribunal.

Tivemos também apenas 3 mulheres ministras no STF: Ellen Gracie (2000-2011), Carmen Lúcia (desde 2006) e Rosa Weber (desde 2011). A corte NUNCA contou com uma mulher negra como ministra em seus quadros. Racismo e machismo estrutural, bem como a falta de transparência no sistema de indicação aos tribunais são elementos apontados como responsáveis por reduzir as chances de homens e mulheres negras de ocuparem as cadeiras da mais alta corte do Brasil.

Tais subjetividades permitem a reserva de mais obstáculos às juristas negras e negros no caminho aos tribunais superiores. Os atuais processos seletivos para as altas carreiras jurídicas (Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública) privilegiam aqueles que podem economicamente investir em estudos preparatórios por longo prazo, os grandes escritórios de advocacia do país contratam quase exclusivamente alunos das universidades de elite com composição majoritária branca, e, por fim, é notório o peso que frequentar determinados círculos sociais detém para a escolha aos tribunais superiores – círculos normalmente restrito à quem tem origem familiar dentro da elite ou que tenha poder econômico de acessá-los.

No mais, o racismo estrutural implica em uma exigência maior de provar que aquelas pessoas que estão postulando tais posições sejam de fato “merecedoras” desses cargos. Basta questionar se fosse uma pessoa negra que tivesse mentido no currículo como o juiz Kassio Nunes (e tantos outros ministros da atual gestão bolsonarista) teria sido validada pelo presidente da República, o Senado Federal e os pares juristas para assumir a posição como foi o futuro ministro.

Ressalta-se que não se defende a flexibilização de critérios profissionais, acadêmicos, éticos e morais para composição desses cargos, mas sim pontuar a necessidade que tais critérios sejam aplicados de forma justa e proporcional a todas e todos, o que sabemos que não se materializa na realidade que observamos nos processos de seleção.

O que a composição da Suprema Corte, e o manifesto conforto da Presidência da República em não indicar pessoas negras, revela o que sobre nosso país? Primeiro, que a teoria, na prática, é outra coisa. Embora o Supremo Tribunal Federal tenha como missão a defesa da constituição e defenda a necessidade da busca por representatividade nos espaços de poder (como no Legislativo, Universidades e concursos públicos), o objetivo fundamental da República de promoção da igualdade racial não se aplica as indicações ao Supremo Tribunal Federal.

E por que seria tão importante a representatividade étnico-racial e de gênero da população brasileira no Supremo Tribunal Federal? O STF tem se configurado como ator político central, em uma conjuntura de retrocesso político e crise econômica, tanto pelo seu efetivo poder de veto sobre a agenda do governo quanto pelo seu papel de avanço na agenda de Direitos.

O Tribunal tem julgado casos históricos, centrais para a manutenção do pacto político e civilizatório presentes na Constituição Federal. Vamos destacar aqui decisões passadas e futuras, que impactam diretamente nas manifestações do racismo estrutural na sociedade brasileira: representação política, sistema prisional, ações afirmativas, letalidade policial.

Embora não se possa negar a contribuição do Supremo Tribunal Federal, para o combate ao racismo, em decisões ligadas ao combate ao racismo e ao anti-semitismo[2], ações afirmativas no ensino superior[3] e no concurso público[4]. Em relação ao reconhecimento de territórios de povos e comunidades tradicionais, podemos destacar a vitória do reconhecimento da constitucionalidade do decreto quilombolas[5].

Mas também retrocessos na intervenções de grandes empresas e do governo em territórios de povos e comunidades tradicionais[6] e a tese do marco temporal que condiciona a demarcação de territórios indígenas somente se for comprovada posse ou ocupação tradicional na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, em 5 de outubro daquele ano. Associado a isso, se não estivessem ocupando, os indígenas deveriam comprovar o esbulho naquela data ou ter uma ação judicial em 5 de outubro de 88.

Em um país onde os negros são minoria na representatividade política já foram julgados temas como à fidelidade partidária[7] , ao direito da minoria de requerer a instalação de comissões parlamentares de inquéritos[8], e à proibição de nepotismo na administração pública[9], o combate à corrupção, incentivos às candidaturas de pessoas negras[10], dentre outros.

No caso do sistema prisional brasilero, foram julgados ainda questões julgadas ao sistema prisional brasileiro como o direito à progressão de regime prisional em caso de crimes hediondos[11], a possibilidade de prisão após decisão privativa de liberdade em segunda instância[12], o reconhecimento em liminar do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional[13].

Pensando no futuro, está pendente de julgamento, o Recurso Extraordinário nº 635.659, no qual se discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/06, no ponto em que criminaliza o porte de pequenas quantidades de entorpecentes (no caso a maconha) para uso pessoal, esse julgamento pode causar direto impacto no sistema prisional brasileiro tendo sido a bélica política de drogas pactuada na lei de 2016, que detém subjetividades capazes de criminalizar a pobreza e a população negra, um dos pilares que sustenta a política brasileira de encarceramento em massa.

Não há também como olvidar a importante recente decisão do Supremo na “ADPF das Favelas”[14]que determinou limites à política de segurança pública do Rio de Janeiro e à violência policial contra as favelas em caráter liminar. A decisão já impactou a vida de centenas de pessoas que foram protegidas em decorrência da decisão do STF, o número de pessoas mortas pela polícia no Rio de Janeiro diminuiu 70% após a decisão[15].

Todas essas ações se caracterizam pela necessidade de reconhecer e viabilizar a luta pela sobrevivência da população negra brasileira. Todas elas necessitam de uma sensibilidade ímpar para que a realidade seja trazida para análise do Tribunal, razão pela qual se faz tão necessário que essas vivências possam ser também representadas no âmbito da Suprema Corte. A diversidade racial deve ser defendida não só como solução para diversificar o Supremo Tribunal Federal em termos numéricos, mas para, qualitativamente, de ampliar horizonte interpretativo do pacto civilizatório presente na Constituição Brasileira.

[1] Dados do Justa: <http://justa.org.br/wp-content/uploads/2019/06/justa_dados_genero_raca_site-3.pdf>.

[2] STF-Habeas Corpus nº 82.424. Disponível em: <http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=185077&modo=cms>.

[3] ADPF 186 e ADI 3330.

[4] Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41. Disponível em: <http:/stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346140>.

[5] ADI 3239.

[6] ADI 3573.

[7] STF: MS 26.604MS 26.602MS 26.603.

[8] STF- MS 24.831/DF, do MS 24.845/DF, do MS 24.846/DF, do MS 24.847/DF, do MS 24.848/DF e do MS 24.849/DF.

[9] ADC-12.

[10] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 73.

[11] STF- HC  82959. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=66480>.

[12] ADCs 4344 e 54.

[13] ADPF 347.

[14] ADPF 635.

[15] Disponível em: <http://www.global.org.br/blog/suspensao-de-operacoes-policiais-no-rj-durante-pandemia-reduz-mortes-em-70/#:~:text=Rio%20de%20Janeiro%2C%203%20de,no%20per%C3%ADodo%20de%20um%20m%C3%AAs>.

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