Democratização da Justiça: uma agenda para a magistratura e a sociedade

Antonio Escrivão Filho

O processo de reforma do judiciário avança a pleno vapor, tendo hoje no Congresso Nacional e no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) dois timoneiros que parecem não se orientar pelo horizonte da democratização da justiça, compreendida como um processo de transformação cultural da sociedade e do judiciário com vistas ao compromisso com a efetivação dos direitos humanos.

 É certo que ao longo da história o judiciário brasileiro foi construído como uma instituição à parte das demandas sociais, como se estivesse acima dos problemas sócio-econômicos do país. Mais que uma mera soma de posturas individuais, esta cultura de distanciamento das causas sociais e, consequentemente, do compromisso com a efetivação dos direitos humanos, corresponde antes a uma estrutura e organização institucional baseadas na verticalização do poder nas funções de governo e gestão do judiciário.

A questão da organização judiciária não diz respeito apenas ao judiciário em si, ou à magistratura, na medida em que é responsável por uma política pública muito especial: distribuição da justiça. A sociedade deve assumir também um papel de protagonista em relação a esta política pública, ao invés de ser mera receptora de um serviço prestado.

Celeridade e eficiência na prestação de serviço estruturam a lógica da reforma do judiciário em curso. São requisitos indispensáveis para a prestação da justiça, mas o método empregado na reforma, qual seja, a centralização dos procedimentos judiciários e a verticalização da força normativa da jurisprudência, pouco avançam para outro sentido senão o da garantia de maior previsibilidade das decisões judiciais, que não se trata de espontaneidade dos diversos atores políticos que estiveram à frente deste processo. Esta é uma pauta colocada pelo Banco Mundial, no ano de 1996, no Documento nº 319, intitulado “O setor judiciário na América Latina e no Caribe: Elementos para Reforma”.

Basta uma rápida análise do referido documento para verificar como a criação do CNJ e suas ações sobre o governo e gestão da política judiciária se enquadram à proposta. O mesmo pode-se dizer das reformas processuais, sobretudo a criação da súmula vinculante, e a proposta de incidente de coletivização de demandas no anteprojeto de reforma do CPC, em detrimento dos processos coletivos.

Uma reforma do judiciário para o mercado globalizado é o sentido desta reforma, até aqui. A sociedade começa a participar, levantando o debate sobre o compromisso com os direitos humanos como critério para a nomeação dos ministros do STF. Verifica-se também no legislativo um intenso movimento das associações representativas da magistratura, talvez ainda um pouco preocupadas com uma pauta coorporativa, em torno dos projetos de lei envolvidos neste contexto de reforma.

A questão que se coloca, observando este duplo movimento da sociedade e da magistratura, é para qual direção precisam ser voltados os esforços. Importa, sobretudo, reconhecer em que medida a reforma do judiciário, enquanto democratização da justiça, interessa.

Assim, compreende-se que para a democratização da justiça é necessário um processo de democratização do Poder Judiciário, reestruturando-o para aos princípios republicanos do Estado Democrático de Direito. Esta é uma pauta que parece ter sido esquecida no processo de reforma e cumpre retomá-la.

A democratização do judiciário e da justiça, neste sentido, assume uma via de mão-dupla, e apresenta duas dimensões de um mesmo processo: o exercício da democracia no interior da organização judiciária.

De um lado, o desmantelamento da lógica da gerontocracia para os cargos de direção, das funções de governo e gestão da política judiciária de planejamento estratégico dos recursos humanos e financeiros. É preciso realizar o debate para a compreensão de que quem ganha não é determinado segmento, mas toda a sociedade.

Do outro lado, a incorporação da participação social junto às funções de governo e gestão desta coisa pública chamada, desde há muito, de justiça. Desvencilhar-se de velhos preconceitos e superar falsos dilemas sobre a natureza da independência e autonomia judicial são as chaves para este processo democrático.

A possibilidade e necessidade de participação social na administração da justiça não se confunde com interferência na prestação jurisdicional, mas produzirá os frutos de uma cultura democrática também na prestação da justiça, na exata medida em que a gerontocracia de hoje desestimula o compromisso com a efetivação dos direitos humanos.

Praticar uma cultura democrática de participação social republicana no governo e gestão do planejamento estratégico do judiciário, e da sua definição de prioridades. Intercomunicação com a comunidade ligada aos direitos humanos – via grupos de trabalho e audiências públicas – para a solução de demandas cuja complexidade não mais encontra a solução nas prateleiras dos gabinetes são medidas que tendem a contribuir para um judiciário democrático.

Um novo judiciário e uma nova sociedade que sairão fortalecidos deste processo de reforma são aqueles que se desafiarão, mutuamente, a praticar a democracia na realização da justiça.

Em tempo: a elaboração da nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional, prevista para este ano de 2010, também inserida no contexto da reforma do judiciário, apresenta-se como uma oportunidade histórica para este movimento político em prol da democratização da justiça.

*Antonio Escrivão Filho é assessor Jurídico da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, que integra a JusDh.

**Este artigo foi originalmente publicado na edição 51 do Jornal Juízes para a Democracia

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