Nota do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Jurídica Popular, que integra a Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), questiona representatividade do povo brasileiro no judiciário, e aponta relação do perfil da magistratura com cenário político.
E quem controla o Judiciário?
Na atual conjuntura brasileira em que o Poder Judiciário vem assumindo um protagonismo cada vez maior no desenrolar do conflito político, algumas perguntas se colocam: quem é esse Judiciário, qual a sua cara e quais são os seus valores? A partir da nossa experiência enquanto advogadxs populares, afirmamos que o judiciário brasileiro é elitista, defensor da propriedade privada, racista, refratário às pautas feministas e corporativista.
De fato, um censo recente realizado pelo Conselho Nacional de Justiça aponta que a magistratura nacional é composta majoritariamente por homens brancos, e negras e negros não chegam a 2% em todo o conjunto. Sua condição de elite econômica é evidente: os juízes brasileiros recebem remuneração mensal média de R$ 41.802,00 (entre os mais altos salários no ranking mundial) e gozam dos maiores privilégios do país (auxílio-moradia, auxílio-saúde, auxílio alimentação, férias de sessenta dias por ano, carro do tribunal etc.).
E, para além de tudo isso, o Poder Judiciário não é submetido a qualquer controle social, sendo que os magistrados, quando fiscalizados, submetem-se à averiguação realizada por seus próprios pares.
O Legislativo, reconhecidos todos os problemas do nosso sistema político, passa ao menos pelo crivo das eleições diretas e periódicas – extremamente limitadas, é necessário dizer, haja visto o financiamento privado de campanha e a concentração do poder midiático – e, assim, se submete a algum (mínimo) controle popular.
Além disso, o Legislativo é também controlado pelo Poder Judiciário, via, por exemplo, controle de constitucionalidade das leis. O Poder Executivo similarmente se constitui a partir de eleições diretas e periódicas – com os mesmos vícios já mencionados – que possibilitam o controle popular, bem como é também fiscalizado tanto pelo Legislativo quanto pelo Judiciário. Porém, quem controla o Poder Judiciário?
A resposta é que não há controle. Ele está descontrolado. De um lado, o Conselho Nacional de Justiça, órgão incumbido do aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, é composto por membros cujo perfil coincide com o dos magistrados brasileiros.
Passados mais de 10 anos de existência do CNJ, ainda há muito o que se avançar para se democratizar os espaços do sistema de Justiça, incluindo as demandas dos movimentos sociais e demais grupos da sociedade civil. Por outro lado, as Corregedorias de Justiça são compostas pelos próprios juízes, guiando-se, como é de se esperar, pelo corporativismo institucional.
Aos que afirmam que o Judiciário é um poder livre e calcado na legalidade e imparcialidade – como se isso esvaziasse a necessidade de seu controle democrático – rebatemos, com a nossa experiência, que o Judiciário não é técnico nem neutro, mas é político e orientado por uma ideologia mantenedora de privilégios, inclusive por coincidirem com os seus próprios.
Assistimos nesses últimos dias a um Judiciário cheio de si, protegido pelo manto da imparcialidade, que tira selfie em protesto a favor do impeachment, divulga nas redes sociais, e dias depois decide “imparcialmente” ação que discute atos da mesma Presidenta que ele, declaradamente, quer afastada do poder.
Ou outro membro da corporação, que reconhece a ilegalidade da interceptação telefônica que ele próprio vazou para os meios de comunicação, mas diz que há precedente em Watergate! Ou que manipula e joga com os procedimentos de um inquérito policial (lembrando que não há ação criminal contra ex-Presidentes ou a Presidenta em exercício) para torná-lo um espetáculo midiático, sem respeitar qualquer garantia ou direito constitucional.
E, ainda, que intercepta telefone central de escritório de advocacia bem como celular de advogado, ignorando o sigilo profissional no exercício da profissão e impedindo assim a ampla defesa. Um Judiciário que assume, abertamente, que tem lado e assim se torna, como acontecia na Idade Média, ao mesmo tempo, inquisidor e julgador, ao arrepio das leis e da Constituição.
O fato é que, para nós, advogadxs populares que atuamos em defesa dos direitos humanos, de ocupações urbanas, povos e comunidades tradicionais, populações organizadas contra a mineração, população em situação de rua, trabalhadorxs exploradxs por grandes empresas, ações judiciais que seguem a mesma lógica das citadas acima não são exceção, mas a regra.
É esse o nosso cotidiano: lidar com um Judiciário que segue legitimando a exploração e subordinação dos grupos subalternos em defesa da manutenção do status quo que o produz e mantém.
Vamos dar alguns exemplos. No caso das ocupações da Izidora, convocado a decidir ações de reintegração de posse de terrenos abandonados e que não cumpriam sua função social, o judiciário foi implacável em ordenar o despejo, sem qualquer consideração aos direitos dos moradores, antes mesmo que se concluísse a instrução processual.
Neutralidade? No caso de outra ocupação, a Guarani Kaiowá, presenciamos desembargadores assentirem que “o tribunal de justiça não é lugar de se fazer justiça”. Justiça? O I Congresso Mineiro sobre Exploração Minerária promovido pela Associação de Magistrados Mineiros – AMAGIS, no ano passado, foi publicamente financiado pelas grandes mineradoras, as mesmas que violam diariamente direitos dos povos e comunidades tradicionais desse Estado, e que cometeram o maior crime sócio-ambiental da história do país. O objetivo do congresso era “promover o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional”… para as grandes mineradoras, claro.
O desrespeito a nós, advogadas populares, também é recorrente. Sofremos constrangimentos, inúmeras vezes, por sermos mulheres e defensoras de “invasores”, “baderneiros”, gente de “segunda categoria” para um Judiciário classista que seleciona quem são, de fato, os “sujeitos de direito”.
E essa seleção não só aparece nas decisões proferidas, como se especializa. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mais de uma vez, criou empecilhos à entrada de moradores de ocupações durante o julgamento de processos que os envolviam.
Tentou impedir também que moradores em situação de rua participassem do julgamento de recurso em processo contra o recolhimento arbitrário de seus pertences pela polícia, sob a justificativa de que não portavam documentos de identidade – os mesmos que haviam sido recolhidos forçadamente e deram ensejo à ação popular cujo recurso seria julgado. Isso sem mencionar as inúmeras vezes que integrantes de movimentos sociais foram impedidos de entrar no prédio do Superior Tribunal de Justiça, para assistir a julgamentos de seu interesse, por estarem calçando chinelos. Justiça para todos?
Por outro lado, a leniência e condescendência do Judiciário com os grandes é também grande: não se investiga o helicóptero cheio de cocaína do Zezé Perrela; Aécio Neves até hoje não foi intimado a depor, apesar das inúmeras menções a seu nome em diversas delações; as privatarias do FHC nunca foram investigadas, assim como o pagamento de mesada por empresa concessionária de free shops a sua ex-amante; os abusos da mídia, com destaque para a Rede Globo, acontecem à revelia do cumprimento da regulamentação constitucional dos meios de comunicação. O Judiciário não controla os poderosos e ninguém controla o Judiciário, ao ponto de um juiz de primeira instância, Sérgio Moro, que não recebeu um voto sequer, pretender definir os rumos da Nação.
Outra questão a se levantar é que a corrupção é considerada amplamente como de responsabilidade dos políticos eleitos pelo povo e sua conduta indevida na gestão do Estado. No entanto, há nítida correlação entre o sistema da corrupção e a reprodução do sistema capitalista que se faz no jogo espúrio entre Estado e Mercado por meio de várias formas, dentre as quais as propinas na formação de contratos. Nessa conjuntura, o Judiciário é chamado a defender a ordem jurídica, mas nada mais faz do que exercer um falso controle que não desestabiliza essa ordem desigual, mas apenas a legitima e aprofunda.
Não se pretende aqui fazer apologia ao governo que está à frente do Executivo ou a qualquer de seus membros. Temos consciência de que eles não governam para as mulheres, para os pretos e pretas, para os pobres, orquestrando contínuos ataques ao povo explorado desse país. A entrega do pré-sal ao capital internacional aprovada pelo Senado, o acordo espúrio do governo com a Samarco (Vale/ BHP Billinton) e a lei antiterrorismo são exemplos recentes de qual lado o governo está. Mas a luta política é muito mais que nossos desejos. Ela é real, concreta, contraditória e urgente e não ficaremos inertes diante da tentativa de golpe orquestrada pelas elites junto ao Poder Judiciário e à rede Globo de televisão.
A conjuntura atual, portanto, coloca em evidência o teor político e altamente seletivo de manobras convenientes ao Judiciário, que ora tomam como alvo os integrantes de um único partido político, com o fim explícito – e, em alguns casos declarado publicamente – de não apenas arrancá-lo do poder, mas destruí-lo, bem como a seus principais dirigentes. O contexto atual escancara que a lei é retórica, que os argumentos são interpretações tendenciosas e que, definitivamente, o Judiciário passa longe de ser nossa corte máxima da imparcialidade, da técnica e da justiça. Por isso, denunciamos o golpe que está em curso no Brasil e nos recusamos a compactuar com um judiciário que legitima e, em grande medida, orquestra e conduz esse golpe. De igual modo, repudiamos veementemente a postura assumida pela OAB que fechou os olhos para as graves violações ao texto constitucional quando deveria defendê-lo. Para onde esse Judiciário vai nos levar, sob as vestes de grande herói da limpeza de ilegalidades? Não esperaremos sentadxs por respostas, mas estaremos nas ruas defendendo o estado democrático de direito que cotidianamente construímos junto ao povo que luta pela transformação social deste país.
Por uma justiça democrática, aberta e comprometida com xs oprimidxs!
Belo Horizonte, 21 de março de 2016.
Coletivo Margarida Alves de Assessoria Jurídica Popular