Nota de repúdio à sentença proferida pela juíza de direito do estado do Paraná, Inês Marchalek Zarpelon

A Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh, rede nacional que, desde 2011, reúne entidades, organizações e movimentos sociais que atuam na defesa de direitos humanos, no enfrentamento das profundas questões de acesso e democratização da justiça, vem manifestar REPÚDIO à sentença proferida pela Juíza de Direito Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, nos autos do processo nº 0017441- 07.2018.8.16.0013, violando frontalmente os princípios fundamentais da República Federativa brasileira e os direitos e garantias fundamentais no que tange ao repúdio ao racismo, tido como crime imprescritível e inafiançável. A magistrada fundamentou a majoração da pena do sentenciado com a seguinte manifestação: “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça (…)”.

A fundamentação da juíza é explicitamente racista e valora negativamente a conduta social da pessoa negra pelo seu pertencimento étnico-racial. Com isso, reproduz de forma explícita o binômio inferioridade e superioridade na comparação de raças, um dos principais marcadores do racismo como sistema hierárquico, sendo a população negra não apenas mantida em condições precárias de existência, mas também tendo suas condutas sociais desqualificadas.

Decisões como essa, ainda, contribuem para legitimação de outras práticas violentas empreendidas contra a população negra por toda a cadeia do sistema de justiça criminal e sistema de segurança pública, e mais especificamente no âmbito de instituições policiais, reforçando o histórico racismo institucional. 

A grave situação do sistema de justiça criminal no Brasil vem sendo objeto de inúmeros estudos e casos analisados no âmbito do sistema de justiça. No âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (j.09.09.2015), o Supremo Tribunal Federal estabeleceu no julgamento da cautelar, que “presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrentes de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativas e administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘estado de coisas inconstitucional’’. Naquela oportunidade, o STF determinou, além de outras medidas, uma série de compromissos de juízes e tribunais, em atenção também a compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

Ocupando o 3º lugar no ranking de países com maior número de pessoas presas no mundo, o Brasil registra cerca de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes, conforme Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen, 2019), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Caso sejam analisados presos custodiados apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias, o país detém 758.676 pessoas presas. Da população encarcerada no Brasil, cerca de 61,7% são pretos ou pardos, e esse dado está diretamente relacionado às práticas estruturalmente racistas do sistema de justiça criminal. 

Importa destacar que a decisão foi proferida em pleno contexto de pandemia de Covid-19, contexto em que o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Recomendação nº 62 de 17/03/2020, recomendando aos tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. Em seu art. 4º, recomenda “aos magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal que, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerem as seguintes medidas”:

I – a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal, priorizando-se:
a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco;
b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus;
c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa;
II – a suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo das pessoas em liberdade provisória ou suspensão condicional do processo, pelo prazo de 90 (noventa) dias;
III – a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, observado o protocolo das autoridades sanitárias.

A gravidade da situação não é verificada apenas em relação às práticas decisórias de magistradas e magistrados, mas também em relação à própria composição do sistema de justiça. No relatório “Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros” (2018), no que se refere ao perfil étnico-racial, a maioria se declara branca (80,3%), 18,1% negros (16,5% pardos e 1,6% pretos), e 1,6% de origem asiática (amarelo) e apenas 11 magistrados se declararam indígenas, enquanto a população negra representa 56,10% da população brasileira (IBGE, 2019).

Assim, verificamos que o racismo que estrutura e é estruturado pelo sistema de justiça brasileiro atua diretamente na conformação das características dos estabelecimentos penais do país, bem como nas formas de composição das carreiras jurídicas. Desta forma, a atuação da referida magistrada precisa de respostas estruturais e não apenas individuais pela democratização do sistema de justiça, por um sistema de justiça não racista –  antirracista. 

Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA! Por um sistema de justiça antirracista!

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