Sem abordar as perguntas feitas pela população, sabatina de Kássio Marques pelo Senado desconsidera participação popular

Articulação que atua para a democratização do sistema de justiça destaca que etapa no processo de indicação para ministro do STF foi apenas protocolar.

*Assessoria e comunicação JusDh.

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Para a Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), rede de organizações sociais e movimentos populares que atua na defesa da democratização do sistema de justiça, a sabatina e aprovação pelo Senado de Kássio Marques, indicação de Jair Bolsonaro (sem partido) para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quarta-feira (21) foi protocolar.

A crítica da Articulação repousa tanto no método adotado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), colegiado responsável pela sabatina, quanto pela postura dos parlamentares e do sabatinado. A JusDh, que reiteradamente denuncia a postura histórica de isolamento e condução a portas fechadas da política de justiça, questiona que o único recurso disponível para participação popular na sabatina – o envio de perguntas para o sabatinado por meio do portal e-cidadania – foi desprestigiado no processo. Apenas ao final da sessão de 10 horas, a presidente da CCJ, Simone Tebet (MDB-MS) apontou que a maioria das perguntas enviadas para o Portal  já havia sido apresentada pelos senadores ao longo do dia, sem apresentação das questões.

A CCJ se resumiu a registrar que houve participação, com envio de várias perguntas. As perguntas não foram resumidas, organizadas, sistematizadas. A presidente da Comissão fez questão de ressaltar que não houve nenhuma pergunta relevante que não foi objeto de indagações pelos senadores. Tenho que discordar, essa participação é sim relevante, é fruto da reivindicação de redes como a Jusdh. Mas o procedimento segue insuficiente”, destaca Luciana Pivato, integrante da JusDh e coordenadora da Terra de Direitos, em referência a ausência de transparência pela CCJ das questões enviadas pela população.

No dia anterior à sabatina a Articulação reivindicou novamente a necessidade de construção de mecanismos para participação da sociedade nos processos de indicação de pessoas que ocuparão a relevante função de ministros da mais alta Corte do país. Em carta pública a JusDh destaca que “transparência e participação popular são valores que devem nortear os procedimentos de todas as indicações para os Tribunais Superiores”, aponta um trecho do documento.

Para também tentar incidir no obstaculizado processo de indicação ao STF a articulação enviou para as e os senadores, na segunda-feira (20), um conjunto de questões. Entre os assuntos abordados, a rede perguntava principalmente sobre o posicionamento do magistrado frente à temas centrais à uma democracia, como preservação do meio ambiente, a promoção dos direitos humanos, o enfrentamento do racismo e o controle social do Judiciário. O documento foi entregue para membros da Comissão, entre eles Tebet e o então relator da sabatina, senador Eduardo Braga (MDB-AM), ausente na sessão desta quarta-feira em decorrência de contaminação pela Covid-19.

Amparada no argumento de que os senadores cumpriram as obrigações determinadas na Constituição para a escuta e votação, Tebet afirmou que a sabatina não foi protocolar.  “Ainda não é possível dizer que a sabatina não permanece como uma fase bastante protocolar. Ainda que muitas perguntas tenham tocado em temas de alta relevância social, não existem meios eficazes para participação popular”, aponta Luciana.

“Não há solução para as diversas perguntas que deixaram de ser respondidas pelo indicado sob argumento de tratarem de temas subjudice sobre os quais estaria impedido de se manifestar. Também não há como negar que diversos senadores usaram seu tempo de fala para antecipar sua aprovação ao candidato à vaga, antes mesmo de terminadas as indagações”, sublinha Luciana, em análise sobre a sabatina não se configurar, de fato, como momento de avaliação dos posicionamentos do indicado à vaga do STF deixada pelo ex-ministro Celso de Mello e posterior juízo sobre suas falas. 

Antes mesmo do encerramento da sabatina o processo de votação pela CCJ já tinha sido iniciado. Em vários momentos os parlamentares apontavam como certa a sua aprovação pela casa legislativa. Pivato ainda contesta o fato de Kássio não responder à várias das questões com o argumento de que os temas em debate estão judicializados.

“Temas relevantes sobre direitos humanos, deixaram de ser respondidos outros foram apenas tangenciados. Manifestar entendimento [de Nunes]  sobre os temas como direitos indígenas, ambiental, etc. ainda que sejam temas objeto de diversas ações judiciais, não é o mesmo que manifestar sua opinião sobre um caso concreto judicializado. Fosse assim, quase nenhum assunto poderia ser objeto de questionamento, já que muitos são os temas importantes para a sociedade  que hoje estão em discussão no judiciário”, complementa.    

Aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça por 22 votos favoráveis e cinco contrários, a aprovação do magistrado pelo plenário da casa legislativa ao cargo no STF também não teve dificuldades – 57 votos favoráveis e 10 votos contrários. O placar registrou uma abstenção. No Senado, todas as votações relacionadas à indicação de autoridades são secretas, ou seja, a posição individual de cada parlamentar não é divulgada.

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Enfrentamento ao racismo

Abordado apenas ao final da sabatina, o tema do racismo não foi apontado pelo magistrado como um tema sensível. Em resposta ao senador Randolfe Rodrigues (Rede), Kássio declarou que a flexibilização das normativas referente ao tema é o pior que poderia acontecer, o que na avaliação dele não tem ocorrido. Kássio ainda sublinhou que a efetivação de questões referentes aos direitos humanos trata-se de um dever do conjunto da sociedade – e não apenas do Judiciário.

O sabatinado ignora a realidade institucional e social brasileira e afirma que não percebe flexibilização da norma, ao contrário, a seu ver a norma vem sendo aplicada a muitas situações que estão sendo equiparadas ao racismo, dizendo que o STF pode atuar se apegando ao texto da Constituição, afirmando que se houver um apego ao texto, isso por si só bastaria para contribuir ao enfrentamento do racismo”, aponta Maira Moreira, assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante da JusDh. Ela ainda completa que “o sabatinado demonstrou total desconhecimento do que é racismo, e das múltiplas situações em que esse é verificado cotidianamente, com violências institucionais seletivas que mata prioritariamente pessoas negras”, destaca.

Os participantes da sabatina também não fizeram nenhuma referência ao fato da magistratura ser predominante masculina e branca. De acordo com perfil sociodemográfico da magistratura brasileira em pesquisa elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 84% dos ministros e 77% dos desembargadores são homens. A maioria dos entrevistados pela pesquisa se declarou branca (80,3%), apenas 18% negra (16,5% pardas e 1,6% pretas) e 1,6% de origem asiática. 

Processo de sabatina de Kássio Nunes foi realizado neste dia 21 / Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Direitos dos povos indígenas

O sabatinado foi diversas vezes perguntado sobre as questões indígenas. Em uma das perguntas a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) afirmou que a demarcação de terras indígenas é um direito constitucional e perguntou qual era a visão do candidato ao cargo de ministro sobre direito originário à terra pelos povos indígenas.

Kássio não respondeu à pergunta, alegando tratar-se de questão judicializada. Para o advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e integrante da JusDh, Rafael Modesto, o sabatinado tinha o dever de se posicionar sobre sobre o direito dos índigenas. Modesto rebateu ao argumento do magistrado que caberia ao legislativo a atribuição da solução dos conflitos. “Não cabe ao poder legislativo definir como vai se dar a resolução do conflito, mas sim à União demarcar e fazer proteger as terras do indigenato”, em referência à fala do magistrado. Modesto reforça que atuação de um ministro do STF deve ser guiada pelo atendimento ao texto constitucional que confere o direito os povos originários. 

Direitos LGBTI+

De mesmo modo o sabatino não apontou que, em cenário conservador e de retrocessos nos direitos humanos, os direitos da população LGBTI+ estão ameaçados. Para Kássio as pautas da população LGBTI+, tais como adoção e união homoafetiva, são temas consolidados na jurisprudência e que cabe ao Congresso Nacional a consolidação da jurisprudência em norma.

Para a vice-presidenta da ANAJUDH-LGBTI, Lígia Ziggiotti “tanto o Poder Legislativo quanto o Poder Judiciário têm compromisso com o pacto constitucional vigente”, declara. Ela pontua que, diante da postura omissa que o Legislativo tem adotado historicamente, reflexo de setores mais reacionários, “o Poder Judiciário, e especialmente o Supremo Tribunal Federal, tem um importante papel contra-majoritário”, no equilíbrio e garantia dos direitos constitucionalmente assegurados à esta população. 

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Garantismo e presunção de inocência

O magistrado evitou ainda entrar em temas complexos, mas ao ser questionado, assumiu ter um posicionamento garantista e algumas preocupações com a garantia de princípios como o da presunção de inocência. 

Para a presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e integrante da JusDh, Valdete Souto Severo a garantia dos direitos previstos na Constituição Federal é premissa essencial para ocupação do cargo de ministro do STF. “Esse é um compromisso indispensável a quem porventura assume cargo na mais alta corte do país e implica especial atenção às questões que atravessam a ideia de garantismo, como a proteção às populações originárias e o combate ao super encarceramento, que no caso do Brasil tem raça e classe bem definidos”, destaca.  

Para Patrick Mariano, advogado e membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) “o candidato acerta quando fala da relação entre a defesa do princípio e criminalização da política e da advocacia, mas poderia ter sido menos acanhado. Talvez, a centralidade na criminalização da política se deva à tentativa de sedução e simpatia dos seus avaliadores, mas a defesa desse princípio, bem como do devido processo legal e ampla defesa, são condições sem quais não se pode falar em Estado de Direito Democrático. Ou seja, vai muito além dessas das questões”, pontua. 

Liberdade de expressão

Questionado pelo  senador Ângelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPI das Fake News, sobre a posição do indicado ao Supremo sobre o assunto, Kássio manifestou que liberdade de expressão não autoriza o cometimento de crimes como calúnia, injúria e difamação e que cabe ao Judiciário aferir sobre a veracidade da informação. “Em que pese a afirmação positiva no sentido de que a liberdade de expressão não deve ser restringida sem a necessária averiguação, é necessário que o judiciário reforce os critérios para que isso ocorra”, destaca Laura Varella, assessora jurídica da Artiga 19 e integrante da JusDh.

Em atendimento aos padrões internacionais ela pontua que “é imperativo que o judiciário adote critérios objetivos e específicos para coibir as fake news, que respeitem firmemente a liberdade de expressão e manifestação, incluindo a sátira, o humor e a crítica, sob o risco de silenciamento, via abuso de poder, de jornalistas, agências de checagem, pesquisadores, organizações da sociedade civil e outros setores críticos que fazem circular informações de qualidade e perspectivas plurais”, complementa. 

Meio ambiente
Questionado sobre decisão, na condição de desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, autorizou uma estrada dentro de uma unidade de conservação em Rondônia em março de 2014, Kássio relatou que autorizou apenas a passagem por uma picada já existente dentro do Parque Estadual de Guajará.

A estrada parque é uma demanda antiga que envolve interesses econômicos, que remontam a década de 1990,  ligados a pilhagem de bens naturais e invasão de terras naquela região, portanto na capacidade ou não de manutenção das condições de preservação das diversas reservas adjacentes e isso foi amplamente denunciado pela CPT e outras entidades, combatida pelo Ministério Público, pois a simples possibilidade de existência da estrada já teria potencial para gerar impactos ambientais, e sua consolidação materializa esses danos pela viabilidade de interiorização dessas áreas com abertura de vicinais. Portanto qualquer decisão que envolva esse objeto, não pode ser resumida ao atendimento de uma situação de emergência e mera passagem desconsiderando o potencial danoso”, elucida a membro da JusDh e da Coordenação da Comissão Pastoral da Terra (RO), Liliana Won Ancken dos Santos, em referência a mais motivações econômicas em torno do parque ecológico.

De acordo com denúncias de organizações sociais e monitoramento de desmatamentos de áreas, seis anos após a decisão do desembargador o desmatamento explodiu no Parque e a estrada é considerada um vetor para invasões de grileiros de terras, madeireiros. O desmatamento saiu de 0,22 km², em 2013, para 2,79 km² em 2014, primeiro ano da abertura da estrada.

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